quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Urbs et Anǐma

Seis horas da manhã. O sol clareou o céu e todo o cinza que compunha aquele agitado cenário de amor, sexo, alegria, infância, dinheiro, loucura, dor e morte. Não demorou muito para que a orquestra começasse a soar o Allegro metropolitano. Sem maestro, os passos apressados, risos, conversas no celular, britadeiras, buzinas e sirenes seguiam desordenadamente a música no decorrer do tempo.
Uma fita branca impedia que os cabelos loiros da pequena garota balançassem com a brisa suave que soprava a praça. Usava sandálias combinando com a fita e um vestido azul claro com dizeres curiosos. Sua alegria podia ser percebida por qualquer um que visse seus passos acelerados ao som do Presto. Sentou no balanço mas permaneceu parada, segurando sua boneca. A mente de uma criança de cinco anos é um mundo de maravilhas. Sem preocupações, olhava com ingenuidade todas as coisas curiosas ao seu redor. As pombas que comiam restos no chão voaram e fizeram com que seus olhos azuis prestassem atenção em um homem perto da lata de lixo. Era velho como seu avô e tinha uma barba branca como a do Papai Noel, porém mais curta...
Descalço contra sua vontade lutava pra sobreviver. Luta a qual o garantiu uma aparência de velho, sendo que ainda não havia completado nem cinco décadas de idade. Havia perdido sua dignidade assim como havia perdido a memória da imagem de seu próprio rosto. Fruto das falhas do sistema regente, era a prova viva de que a vida é injusta. Uma vez não encontrando nada útil no lixo, caminhou até a esquina. Sentado no chão ao lado do entulho estava em seu patamar apropriado. Sem esperanças, o mendigo observava as pessoas que passavam. Estendeu sua mão em busca de esmola. A jovem porém continuou andando sem nem notar sua presença...
Dezoito anos e uma vida inteira pela frente. Os cabelos castanhos e compridos tampavam os fones de ouvido de seu ipod. Com sua mão esquerda levantou seu ray ban e revelou seus olhos verdes que até então estavam escondidos. Com a outra mão começou a digitar uma mensagem em seu celular. Sinal Verde. Sinal Vermelho. Atravessou a rua e levantou a mão chamando um táxi que a levaria até sua residência. No bairro em que morava só haviam casas transbordadas de luxo. Sua casa tinha um tom rosado e inúmeras pilastras brancas na frente. Sua mãe, a famosa jornalista da televisão estava na cozinha. Separada há dois anos, sua mãe mantinha uma relação amigável com o ex-marido. A jovem chegou e atendeu o pai no telefone. Não, não podia jantar no Chez Pierre com seu pai pois já tinha compromissos para a noite. Conformado, seu pai disse adeus do outro lado...
Dinheiro e uma carreira de sucesso não significavam mais nada. Era um importante empresário porém era infeliz. Há dois anos havia perdido a motivação. A ambição causou perdas e agora não tinha mais nada. Dinheiro não é nada. Seu relógio de pulso marcou oito horas. As ruas a noite se transformavam em grandes labirintos. Sozinho com seu Audi foi em direção do consolo. Dinheiro compra sexo mas não compra amor. Suspiros sem sentimento e olhares sem significado o deprimiam. Estava deprimido. Acendeu o cigarro e começou a fumar na janela. As ruas pareciam se movimentar por causa dos carros. A cidade estava viva. Virou se e entregou as notas amassadas para a mão de unhas vermelhas...
Já estava acostumada e não se importava mais, tinha seu preço. Trocou tudo que tinha por trajes obscenos e cabelos tingidos. Não beijava e não fazia por amor. Era apenas um produto. Ficava sujo e usado. Não se importava mais. Andava de esquina a esquina, na escuridão, sem temer nada. A escuridão era sua casa...
O garoto de jaqueta de couro assobiou para a prostituta que passou rebolando. Riu com seus amigos. Buscava liberdade. O mundo revelou-se cruel e lutava contra isso. Seu cabelo, suas roupas e seu gosto musical expressavam sua insatisfação com a indiferença e aceitação alheia. Estava com seus iguais e portanto estava eufórico. Podia tudo. Queria tudo. Era tudo. A areia escorria pela ampulheta enquanto afundava na escuridão da noite. Ácido e agulhas o livravam do sofrimento terreno. Explorava o amor com gemidos inusitados. Em um mundo de icógnitas, não se importava com X e Y. Dor, mágoas, sofrimento, estava vivo. Seguia a sinfonia até o amanhacer, quando a mente clareava e o azul voltava a predominar no horizonte. Ode a alegria!
O barulho crescente da orquestra acordou o garoto. Deitado no chão duro da praça abriu os olhos negros.
Os cabelos loiros da pequena garota estavam presos por uma fita branca. Usava sandálias combinando com a fita e um vestido azul claro. O garoto começou a sentir gotas caindo sobre seu rosto enquanto observava aquela bela cena. Estava chovendo. A garota de sandálias brancas começou a andar. Seu vestido azul claro balançava com o vento enquanto andava. Andou até desaparecer no horizonte cinzento. Os dizeres em latim no peito da pequena menina porém permaneceram na cabeça do jovem que a observava: Urbs et Anǐma...

2 comentários:

  1. Show cara! A mesma cidade, mesmos momentos e pessoas e vidas totalmente diferentes. Criativo e bem escrito, ta de parabéns Igor. =)
    Mas para nós que não falamos latim, uma pequena tradução do que está escrito no peito da garota viria a calhar.
    Beijo!

    ResponderExcluir
  2. Muito lindo o texto.Parabens!!!

    ResponderExcluir